Malik Ambar. Escravo africano, libertador e rei na India

Fonte: theindianquest.com

Chapu nasceu na Abissínia (Etiópia atual) por volta de 1546. Foi capturado por negreiros árabes quando ainda era adolescente. O nome de Ambar foi-lhe dado em Baghdad pelo seu proprietário na altura e o de Malik (rei, em árabe) na Índia. Neste país foi regente de um dos seus reinos que libertou do jugo estrangeiro. Morreu em 1626, com 80 anos de idade e ficou na história como um génio militar e grande reformador. O tráfico árabe de escravos africanos existiu do século VII ao século XIX. Após o fim do tráfico, a escravatura continuou até 1970, ano da sua abolição oficial em Oman. Os principais parceiros e aliados dos árabes eram turcos, persas e indianos. Os escravos eram originários do Sahel, da África Ocidental, Oriental e Central. A exportação de escravos fazia-se através do Saara para o Norte de África; do Mar Vermelho e sobretudo do Oceano Índico para as ilhas do Oceano Índico, os países árabes, a Pérsia (Irão), a Turquia, a Índia, ou ainda, em pequenos números, a Indonésia, a China e o Japão. Segundo diferentes estimativas o número de vítimas africanas do tráfico árabe situa-se entre 12 e 17 milhões, incluindo numerosas mortes em consequência de doenças, fome, exaustão ou punições durante a captura, transporte e cativeiro. Contrariamente aos crimes e horrores do comércio e da escravatura transatlânticos praticados pelos europeus, as atrocidades e as mortes do sistema esclavagista árabe são pouco conhecidas. Em larga medida, constituem ainda hoje um tabu ou, nas palavras do antropólogo e escritor senegalês Tidiane N’Diaye, um genocídio oculto. 

Os escravos africanos trabalhavam, consoante as regiões, no serviço doméstico, drenagem de pântanos, extração de sal, pesca de pérolas, agricultura, produção de têxteis, construção de cidades, portos, etc. Muitos outros eram eunucos ou então militares, quando não constituíam simplesmente um símbolo de riqueza e prestígio social. As mulheres escravas eram destinadas principalmente ao serviço doméstico, eram concubinas ou objeto de exploração sexual como por exemplo em haréns. 

Os eunucos, escravos castrados e, por conseguinte, destituídos de qualquer capacidade de procriação, eram guardiões nos haréns e palácios, trabalhavam na administração, coleta de impostos, etc. Eram pessoas de confiança e não raramente espiões por conta dos seus donos. Mantinham no entanto a sua condição de escravos e, tal como os outros escravos, estavam sujeitos a punições, incluindo a morte. Para satisfazer a sua enorme procura, havia um verdadeiro sistema de produção de eunucos. Antes da deportação para os diferentes países, jovens rapazes africanos entre os 10 e os 14 anos de idade eram capturados e enviados para centros especializados de castração situados em vários países de África. Neles procedia-se à ablação dos seus testículos, quando não da totalidade dos órgãos genitais. Estima-se que 80 por cento morriam devido a hemorragias, infeções e mau trato. A presença de escravos militares africanos era uma característica importante e visível do sistema esclavagista no Médio Oriente e na Ásia do Sul. Uma percentagem significativa dos escravos militares era oriunda da África Oriental e em particular da Abissínia, um país já na época bastante populoso. Malik Ambar foi um dos escravos militares. Foi deportado para o Yemen, quando tinha cerca de 14 anos de idade. Foi de novo vendido e, desta vez, levado para Baghdad. Ao que parece, foi nessa altura que ele se converteu ao islão, embora não se saiba se o fez voluntariamente ou coagido. Ainda como escravo, deixou Baghdad para a etapa final da sua vida: Índia. 

Nas regiões ocidentais e meridionais da Índia viviam muito antes da chegada de Malik Ambar abissínios e outros africanos oriundos da África Oriental: marinheiros, comerciantes, escravos militares, etc. Os diferentes monarcas na Índia recrutavam um grande número de escravos para as incessantes guerras em que estavam implicados. Alguns escravos e ex-escravos ocupavam uma elevada posição de poder e prestígio na hierarquia militar e na administração. No Paquistão e na Índia atuais vive atualmente uma diáspora africana de cerca de duzentos mil membros conhecidos por Siddis. Na Índia, Malik Ambar foi propriedade de Mirak Dabir, mais conhecido por Chenzig Khan. Este, também de origem abissínia e antigo escravo, era o poderoso primeiro-ministro do reino (sultanato) de Ahmednagar, situado em Deccan, numa vasta região geográfica do centro e ocidente da Índia, constitída por vários Estados. Chenzig Khan ganhou afeição por Malik Ambar. Durante anos, deu-lhe uma sólida formação em administração e na arte da guerra. 

Após o seu assassinato, a sua esposa subiu ao poder e libertou formalmente Malik Ambar, em reconhecimento pela sua lealdade e serviços prestados. Malik foi então para o reino vizinho de Bijapur onde, como mercenário, criou uma pequena força de cavalaria, constituída em grande parte por africanos. Mas ele tinha então sentimentos profundos em relação a Deccan e era-lhe fiel em todas as circunstâncias. Era indiano. 

 Malik Ambar regressaria pouco depois a Ahmednagar, em finais do século XVI para lutar contra a invasão e a dominação do seu país adotivo pelo potente exército mogol vindo do norte. Desenvolveu uma doutrina militar original, baseada numa estratégia combinada de guerrilha e tropas regulares. Venceu e os mogóis retiraram-se. Comandava então um exército considerável o que lhe dava influência e estava determinado a libertar o reino da miséria e da fome, e os camponeses da opressão dos impostos. Instalou no poder um membro da família real de menor idade e nomeou-se a si próprio Regente. Detinha todos os poderes e reinava de facto. 

Malik Ambar lutou sem tréguas contra a fratura étnico-religiosa que existia entre hindus e muçulmanos e contra o racismo. Lançou-se resolutalmente numa série de reformas. Criou um sistema uniformizado de administração e impôs a lei e a ordem no reino. Criou infraestruturas urbanas, como por exemplo de canalização de água, cujos vestígios são visitados ainda hoje. Na história económica e social da Índia, o nome de Malik Ambar é indissociável sobretudo da reforma fiscal que efetuou no mundo rural. Procedeu a uma nova classificação das terras e decretou impostos mais justos e incentivadores, na base dos diferentes tipos de solos e de plantas. Substituiu os funcionários corruptos e estabeleceu uma relação direta entre o Governo e as aldeias. Atingiu deste modo o triplo objetivo de impulsionar a produção agrícola e alimentar, melhorar os rendimentos dos camponeses e aumentar as receitas do Governo. Malik Ambar, membro da diáspora africana na Índia, foi um estadista incomparável, dotado de uma visão extraordinariamente moderna e indiscutivelmente adiantada em relação à sua época. 

José Filipe Fonseca
 
zefilipefonseca@gmail.com 
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Referências: 
– Jogindhra Nath Chowdhuri. 1933. Malik Ambar: A Biography Based on Original Sources. Calcutta: C. Sarkar.

– Ronald Segal, 2001. Islam’s Black Slaves. A History of Africa’s Other Black Diaspora. London: Atlantic Books.

– Tidiane N’Diaye, 2008. Le génocide voilé. Enquête historique. Paris: Éditions Galimard.
 

– Omar H. Ali, 2016. Malik Ambar. Power and Slavery Across the Indian Ocean. Oxford: Oxford University Press