Tudo passa menos o passado

Exposição colonial. Fonte: short-history.com

À entrada do Museu da África na Bélgica encontra-se em grandes letras a inscrição “Tudo passa menos o passado”. A Bélgica é o país do Rei Leopoldo II. Durante o seu reinado, de 1865 a 1909, as autoridades coloniais massacraram mais de 10 milhões de congoleses e cortaram as duas mãos a um número incalculável de congoleses por atos considerados contrários à ordem. Hoje, em toda a Bélgica, estátuas, nomes de ruas, instituições, parques e hospitais, assim como livros, palestras, museus e exposições glorificam o “Roi bâtisseur” (rei construtor). À capital do Congo deram o nome de Léopoldville. O nome mudou para Kinshasa em 1966, já depois da independência. Rigorosamente sem exceção, todas as outras potências esclavagistas ou coloniais cometeram massacres e outros crimes contra africanos. No entanto, escravocratas e colonialistas foram e continuam a ser celebrados e a suas obras enaltecidas

Mas quem reconhece e enaltece o legado e a contribuição dos escravos africanos? Por exemplo à Revolução Industrial inglesa dos séculos XVIII e XIX, que fez da Inglaterrra a maior potência económica europeia, e transformou radicalmente a economia da Europa e do mundo. Os escravos africanos, através do seu trabalho, forneciam matéria-prima para a indústria. A sua exploração brutal e desumana produziu lucros colossais que serviram de investimentos. Tal como a enormíssima indemnização concedida aos esclavagistas pela ‘perda da sua propriedade’. Homens, mulheres e crianças africanos. Investimentos foram feitos em fábricas, novas tecnologias de produção e de transporte, caminhos de ferro, indústria naval, sistemas financeiros, comércio de longa distância. Cidades como Manchester, Liverpool e Bristol desenvolveram-se. Londres, ainda hoje um dos mais importantes centros financeiros do mundo e o principal até os anos 1980, beneficiou enormemente dos dinheiros da escravatura que passavam por ela. Os grandes bancos, incluindo o Banco de Inglaterra e o Barclays, companhias de seguros, como a Lloyds e outras instituições financeiras eram frequentemente dirigidos por antigos comerciantes e proprietários de escravos, seus herdeiros ou outras pessoas direta ou indiretamente ligadas à escravatura. 

Quando, no século XIX, a Inglaterra decidiu abolir o tráfico de escravos e mais tarde a própria escravatura, a razão não foi nem única e nem principalmente o humanismo. Houve, é certo, a ação dos abolicionistas. Mas sem a resistência, as fugas, as sabotagens e as revoltas cada vez maiores e mais frequentes dos escravos, sem a consideração dos novos interesses dos esclavagistas e sem a sua indemnização, os parlamentares ingleses não teriam aprovado a abolição da escravatura, pelo menos nesse momento. Com o dinheiro dos impostos e até 2015, o Estado britânico indemnizou 4 000 esclavagistas e os seus herdeiros. Foram 30 milhões de libras no século XIX, equivalentes a 16 mil milhões de libras atuais. 18 mil milhões de euros. Este montante representava 5% do PIB de Inglaterra na altura. Enquanto isso, só 0,5 % do PIB era consagrado à educação. Ora, em 2018, 5% do PIB inglês correspondia a 120 mil milhões de euros. É este número que nos faz compreender hoje a dimensão real da compensação financeira. Contudo, a historiografia oficial prefere que as populações europeias e americanas acreditem que a sua prosperidade atual é o fruto exclusivo do seu trabalho, criatividade e boa governação. E que não devem nada aos africanos. 

Outros países, como o Brasil, a Holanda, Portugal, e a França também procederam a indemnizações. No caso do Haiti, a principal colónia francesa nas Caraibas, foram os escravos que indemnizaram os seus escravizadores! Estes, os seus descendentes e os governantes franceses de ontem e de hoje nunca perdoaram ao Haiti o facto de ter vencido as tropas e os generais de Napoleão e proclamado a primeira república negra do mundo. E inspirado outras revoltas de escravos. De 1825 a 1950, utilizando o embargo e a ameaça dos seus canhões, a França forçou o jovem Estado haitiano, isto é os antigos escravos africanos, a transferir-lhe 150 milhões de francos-ouro, o equivalente a 300 % do PIB do Haiti. O Estado francês teima em não reconhecer a injustiça e o papel extremamente nefasto que essa dívida vergonhosa teve e continua a ter nos problemas económicos e sociais do Haiti. 

Quem não foi indemnizado em país algum foram os escravos africanos. Os esclavagistas, políticos e abolicionistas europeus e americanos consideraram que os escravos não perderam nada mas sim ganharam, porque passaram a ser “livres”. Depois das abolições os escravos eram, por exemplo, obrigados a trabalhar gratuitamente durante 10 anos ou mais como “aprendizes” para os seus antigos proprietários. Nas Caraibas, muitos foram substituídos por trabalhadores contratados importados da Índia. Abandonados, sem emprego e sem verdadeiros laços familiares e sociais, muitos ex- escravos africanos foram condenados a uma vida de miseráveis e mendigos errantes nas cidades. O que, séculos depois, ainda é visível um pouco por toda a parte nas Américas. 

Segundo vários historidores, as abolições ocorreram quando o modelo do comércio triangular entre a Europa (capitais, armas e artigos de troca), a África (escravos) e as Américas (trabalho escravo e os seus produtos) já estava economicamente em declínio. A escravatura foi abolida. Os esclavagistas foram indemnizados e o comércio triangular foi substituído pelo “comércio legítimo”. Os produtos tropicais que eram produzidos nas Américas podiam e passaram a ser produzidos nas colónias em África, mais perto da Europa. O trabalho escravo nas Américas foi substituído pelo trabalho forçado em África. A prioridade dos investidores e do Estado ingleses deixou de ser a Jamaica e os outros países das Caraíbas e passou a ser as novas colónias de povoamento europeu (Austrália, Nova Zelândia e África do Sul), a Índia e a América Latina. Tal como nos outros países, os interesses económicos e financeiros dos esclavagistas e seus descendentes primaram. Não se pode dizer que este espírito tenha desaparecido, apesar de os atores, as formas e a terminologia serem hoje diferentes. 

Outros impactos da escravatura persistem. O racismo, por exemplo. A ideologia da supremacia branca que infetou a política e parte da sociedade europeia, estadounidense e latinoamericana não foi inventada por Le Pen, Trump ou Bolsonaro. Vem do passado. A escravatura dos africanos criou o racismo anti-negro. O negro passou a ser sinónimo de escravo e vice-versa. A escravatura acabou, mas a Humanidade continua a carregar o fardo do racismo. Até finais dos anos 1950 foram organizadas as chamadas exposições coloniais em França, Bélgica, Holanda, Portugal, Grã-Bretanha, Alemanha, Itália e África do Sul. Jardins zoológicos de seres humanos que os europeus visitavam, fascinados e em grande número. A finalidade era provar que os africanos eram selvagens, seres inferiores. Eram forçados a mostrar a maneira como viviam, preparavam os alimentos, comiam, cantavam e dançavam na “selva”, em África. Mais próximos de macacos do que de seres humanos. As mulheres eram obrigadas a exibir o seu corpo nu. As autoridades coloniais portuguesas levaram dezenas de bissau-guineenses e outros africanos a Portugal onde, numa perspetiva racista, os exibiram como objetos na Exposição Industrial de Lisboa de 1932 e na Exposição Colonial do Porto de 1934. 

Os graves problemas herdados das injustiças e crimes do passado não podem ser resolvidos pelo silêncio, pelas omissões e distorções, e pela demagogia. 

José Filipe Fonseca
 
zefilipefonseca@gmail.com

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Referências: 
– Thomas Piketty, 2019. Capital et idéologie. Paris : Éditions du Seuil. 


– Catherine Hall, Nicholas Draper and Keith McClelland, 2014. Legacies of British slave-ownership: colonial slavery and the formation of Victorian Britain. Cambridge: Cambridge University Press.

– Nicholas Draper, 2010. The Price of Emancipation. Slave-ownership, Compensation and British Society at the End of Slavery. Cambridge: Cambridge University Press.
 

– 
Joseph Inikori, 2002. Africans and the Industrial Revolution in England: a study in international trade and economic development. Cambridge: Cambridge University Press. 

– Nicolas Bancel, Pascal Blanchard, Gilles Boëtsch, Éric Deroo et Sandrine Lemaire, 2004. Zoos humains. Au temps des exhibitions humaines. Paris : Éditions La Découverte.