A "negra do hospital": mulher guineense funda o primeiro hospital das Américas

Mesmo conhecendo o silêncio e a ignorância que rodeiam a enorme contribuição da África e dos africanos à construção do mundo moderno, fico frequentemente surpreendido pelo facto de ser tão difícil ter acesso aos traços físicos dessa história ou encontrar formas locais de memória que elevem o papel dos africanos à sua justa dimensão

Howard French. Construído em cima dos corpos dos escravos. Como os africanos foram apagados da história do mundo moderno.

 

 

 

Resumo

O hospital é, sem contestação possível, uma das maiores criações da Humanidade. No caso do continente americano, sabe-se que o primeiro foi fundado entre 1497 e 1501 em Santo Domingo (ilha Hispaniola), nas Caraíbas, por uma africana. Esta passou a ser conhecida como a “negra do hospital”, pois o seu nome e outros dados biográficos não constam em nenhum documento conhecido. A partir de 1503, um segundo hospital foi fundado na mesma área pelo governador de Santo Domingo. Contrariamente à “negra”, os dados do espanhol Nicolás de Ovando estão registados e a sua obra é considerada oficialmente o primeiro hospital das Américas. Esta narrativa é no entanto posta em causa em vários documentos e pela tradição.

Os nomes de muitos outros escravos africanos também não constam de nenhum documento de embarque num navio esclavagista ou outro documento oficial da colónia. A prática deliberada de não registo de nomes era uma das vias utilizadas pelos esclavagistas para tentar objetificar os escravos africanos, isto, é desumanizá-los e transformá-los em seres sem identidade, dignidade, passado ou cultura.

Como outros escravos africanos na etapa inicial da colonização de Hispaniola, a “negra do hospital” terá viajado da África Ocidental para Espanha (provavelmente Sevilha) e daqui para Santo Domingo. Todos os africanos na Ilha estavam sujeitos ao regime racista, brutal e desumano do sistema esclavagista. Mas as mulheres sofriam ainda mais devido à sua tripla condição de negra, escrava e mulher. Quando chegou a Santo Domingo, a “negra do hospital” era alforriada. Apesar de não ter tanta liberdade, ao ser alforriada já não era considerada escrava, mas continuava a sofrer os preconceitos de ser negra e mulher. Era relativamente livre, mas continuava a ser vista e tratada como inferior.

Quem cuidava dos africanos doentes eram outros escravos africanos. O que fundamentalmente distinguiu a “negra do hospital” dos outros terapeutas presentes em Hispaniola foi a sua visão de medicina, que a levou a utilizar uma infraestrutura física para receber e tratar doentes ao abrigo dos elementos do clima. Antes não havia nenhum estabelecimento hospitalar em Hispaníola ou em qualquer outro lugar das Américas. A “negra do hospital” curou africanos, ameríndios e brancos pobres.

Nos documentos aos quais tivemos acesso não há informações precisas sobre como a “negra” exercia medicina. Mas sabe-se que, durante a época em que ela trabalhou, os espanhóis em Hispaniola só conheciam as doenças que eles próprios introduziram e que se revelaram frequentemente fatais para a população ameríndia autóctone. Não conheciam e não sabiam tratar as doenças das regiões tropicais da África e das Américas. Quem sabia eram os africanos e os ameríndios tinham conheimentos sobre a utilidade das plantas medicinais e as propriedades terapêuticas de certas plantas alimentares, na base das quais preparavam e administravam medicamentos. Muitas dessas plantas foram introduzidas de África, segundo múltiplas evidências.

Sobre a construção do verdadeiro primeiro hospital pela africana existem manuscritos de dois arcebispos católicos da Ilha à Coroa Espanhola, vários documentos e a tradição oral. Quanto à origem da “negra do hospital”, um dos escritos refere-se à Senegâmbia, termo que na altura e durante muito tempo depois, designava os territórios dos atuais Estados do Senegal, da Gâmbia e da Guiné-Bissau. Mas dois especialistas são mais precisos e confirmam que ela era efetivamente oriunda do território que é atualmente a Guiné-Bissau.

Há provas de que quando Ovando chegou à Hispaniola em 1502 o hospital da “negra” já existia. Documentos atestam que ele sabia, inspirou-se nele e mandou construir um novo hospital, maior e de pedra ao qual deu o seu nome. Porque é que nenhum documento oficial atribui à “negra” a fundação do primeiro hospital das Américas? A opinião prevalecente é porque Ovando, governador espanhol de Hispaniola, não podia aceitar que a sua obra fosse ocultada pela obra de uma negra, por mais piedosa que ela fosse.

Hoje em Santo Domingo diante das ruínas do hospital San Nicolás de Bari existe uma placa onde se pode ler que foi Ovando que construiu o primeiro hospital das Américas. Nenhuma placa ou outra marca assinala a obra da “negra do hospital”. Mas como escreveu Emmanuel Dongala, a história de um povo não deve morrer com aqueles que nela participaram. Ela deve ser transmitida de boca em boca, de memória em memória aos netos dos nossos netos.

José Filipe Fonseca
zefilipefonseca@gmail.com
Março 2024