Benkos Biohó. Escravo guineense funda primeiro território livre das Américas
Em 1599, Domingo Biohó, mais conhecido por Benkos Biohó, funda Palenque de San Basílio, o primeiro território negro livre das Américas. Benkos, que morreu a 16 de Março de 1621, é um herói da Colômbia, sobretudo para os afro-colombianos. Uma estátua sua encontra-se no centro da vila que hoje tem 3500 habitantes. Em 2005, a UNESCO outorgou a Palenque de San Basílio o estatuto de Património Mundial da Humanidade. A vida e a obra de Benkos continuam a ser celebradas em toda a Colômbia e noutros países latino-americanos. São objeto de estudos, conferências, aulas, publicações, excursões, programas radiofónicos e televisivos, filmes, pinturas, esculturas. O nome de Benkos foi conferido a várias instituições colombianas.
Benkos Biohó nasceu no Arquipélago dos Bijagós, onde foi capturado juntamente com a sua mulher Wiwa, a sua filha Orika e o seu filho Sando. A família de Benkos permaneceu unida até chegar ao Novo Mundo e mesmo muito tempo depois. Tal não aconteceu com milhões de africanos, sobretudo quando a captura se fazia longe da costa, no período de maior procura de escravos. Os escravizados passavam então por vários intermediários que os compravam e revendiam como simples mercadorias. Num grande número de casos, a esposa era separada do esposo e os filhos dos pais. Eram levados para sítios diferentes e nunca mais se voltavam a ver.
Durante as longas semanas da travessia da Passagem do Meio (Oceano Atlântico), um grande número de escravizados se suicidava, recusava alimentar-se ou sucumbia à melancolia, o que era comum entre os Bijagós quando capturados. Num ato de rebelião, alguns atiravam-se ao mar. Os mortos, doentes, feridos e punidos eram deitados ao mar pelos tripulantes dos navios negreiros. Cerca de dois milhões de africanos foram assim devorados pelos muitos tubarões que seguiam atrás dos navios. A família de Benkos sobreviveu.
Em 1596, o navio negreiro que transportava Benkos chega à Colômbia, mais precisamente a Cartagena, o principal porto de entrada de escravos africanos na América sob jugo espanhol. Três anos após o seu desembarque, com um grupo de cerca de trinta outros escravos africanos, do qual era o líder, foge de canoa e funda um palenque, termo espanhol que designa aldeia de escravos fugitivos. Novos escravos iriam depois encontrar refúgio no palenque. Pertenciam a várias etnias da África Ocidental e da África Central e tinham culturas e línguas diferentes. Professavam diversas religiões africanas ou eram muçulmanos. Benkos uniu-os. Surgiu o crioulo palenquero, constituído por palavras oriundas do espanhol e de línguas africanas. Para se defender dos assaltos das tropas enviadas pelos proprietários de escravos, Benkos treinou militares, criou um exército estruturado e mandou construir fortificações de troncos de árvores à volta da aldeia. Durante mais de catorze anos, dirigiu ataques sucessivos às tropas espanholas. Estas referiam-se a ele como o “Rey de arcabuco” [rei dos pântanos], uma alusão à sua grande capacidade de liderança militar e civil e à floresta do mangal característica da região que onde se encontrava o palenque. A ação de Benkos ultrapassou de longe a esfera militar. Ele procedeu à organização social e económica da comunidade palenquera. Instituiu um sistema de justiça adequado, por exemplo, para proteger as mulheres que eram em número inferior aos homens. Outro exemplo refere-se à Orika, filha de Benkos. Ao que parece, esta, quando tinha 16 anos, tinha relações amorosas com Francisco de Campos, filho do dono da plantação em que ela e a mãe tinham estado. Quando fazia parte de um grupo que perseguia Benkos, Campos foi ferido. Orika cuidou dele e forneceu-lhe informações sobre o pai e os escravos fugitivos. Orika foi apanhada pelos escravos e julgada segundo uma tradição africana. Deram-lhe uma bebida. Se sobrevivesse, era declarada inocente e libertada. Se ela morresse, era considerada culpada. Ela morreu.
Com base nos conhecimentos e experiências que levaram da África, os palenqueros cultivavam inhame, mandioca, arroz, feijões, milhos. Criavam gado e produziam carne, leite, ovos, cera e mel. Caçavam e pescavam. Construíram casas. Fabricavam pilões e almofarizes, cestos e outros utensílios domésticos. Utilizavam plantas medicinais. Confecionavam tambores, chocalhos e flautas, além de outros instrumentos musicais. Eram auto-suficientes e levavam uma vida social, culural e espiritual plena.
Tendo reconhecido a sua incapacidade em aliciar ou derrotar militarmente Benkos, as autoridades Coloniais espanholas assinaram, em 1605, um tratado de paz com ele. Palenque de San Basílio passou a ser considerada território negro autónomo, incorporado na estrutura administrativa oficial da Colômbia. Com exceção de padres, nenhum espanhol era autorizado a entrar em San Basílio. Benkos adquiriu o direito de circular livremente em Cartagena. Fazia-o muitas vezes a cavalo, vestido à espanhola e armado. Muitos esclavagistas não podiam aceitar “tanta arrogância”, como diziam, por parte de um escravo que se considerava igual a eles. Em 1621, homens a seu mando montaram uma cilada, prenderam e assassinaram Benkos. Durante dois séculos após a morte de Benkos, o seu génio militar, a sua liderança e a organização social em San Basílio continuaram a inspirar e a servir de exemplo aos combatentes da liberdade e à criação de novos palenques na Colômbia e noutros países. A nação que Benkos fundou e liderou continua a existir, livre, unida e solidária, baseada no destino comum dos seus membros. Sem fundamentalismo étnico ou religioso. Lição de um guineense do século XVII à Guiné-Bissau de 2020!
Deixo aqui os meus sinceros agradecimentos a Leandro Pinto, da COAJOQ (Canchungo). Ele foi a primeira pessoa que me falou de Benkos. Despertou-me a curiosidade e o interesse por essa figura invulgar da história latino-americana, africana e universal. Agradeço também ao historiador Omar H. Ali, que colocou à minha disposição o seu magnífico trabalho Benkos Biohó: African Maroon Leadership in New Grenada. Consultei também: Juán de Diós Mosquera. Benkos Biohó, gran heroe y dirigente cimarron; Ministério de Cultura/Instituto Colombiano de Antropologia y História. Palenque de San Basílio: Obra Maestra del Patrimonio Intangible de la Humanidad; Alen Castaño. Palenques y cimarronaje: procesos de resistencia al sistema colonial esclavagista en el Caribe Sabanero; Richard Cross. Domingo Biohó: entre hombre y heroe; Marcus Rediker. À bord du négrier. Une histoire atlantique de la traite.
José Filipe Fonseca