Arroz no cabelo
Há mais de 3500 anos, o arroz africano foi domesticado nas planícies de água doce do Rio Niger no Mali. O Sahel atravessava então um importante período de seca e de crise alimentar. No seu espaço geográfico, os habitantes conheciam bem e exploravam as plantas espontâneas que lhes forneciam alimentos e outros bens e serviços. Uma delas era a espécie de arroz Oryza barthii. Decidiram adaptá-la ao seu ambiente e cultivá-la. No fim de um longo processo de observação, seleção e experimentação, surgiu uma nova espécie de arroz, a Oryza glaberrima, com características genéticas e morfológicas próprias. Os habitantes passaram a semeá-la, a cuidar do seu desenvolvimento, a protegê-la contra insectos, micróbios, plantas daninhas e aves, e a controlar a sua colheita. As mulheres selecionavam e recolhiam sementes que voltavam a usar. Emigrantes levaram sementes da nova espécie de arroz para a costa ocidental da África. Aqui, o cereal foi adaptado aos novos nichos ecológicos e socio-culturais e foi domesticado uma segunda vez: arroz de bolanha de água salgada entre os rios Casamance e Cacheu; arroz de sequeiro (npam-npam) nos planaltos da Guiné-Conakry.
A geógrafa norte-americana Judith Carney diz-nos que da costa da África Ocidental o arroz viajou em navios negreiros, primeiro para a América Latina no século XVI e depois para a América do Norte no século XVII. Segundo lendas do Brasil, Suriname, Guiana Francesa, El Salvador e Estados Unidos foram as escravas que transferiram o arroz africano para as Américas. Nos navios em que pilavam arroz para alimentação dos escravos, as mulheres tinham acesso aos restos do arroz em casca. Esconderam uma parte dos grãos no cabelo para não serem detetados e confiscados pela tripulação. Em terra, semearam-nos nas pequenas parcelas de terreno que os proprietários de plantações concediam aos escravos para as suas culturas de subsistência (Carney, Arroz Negro). No Estado do Maranhão (Brasil) onde, a uma dada altura 70% dos escravos africanos eram originários dos portos de Bissau e de Cacheu, existe a seguinte lenda captada num livro de Judith Carney e Richard Rosomoff:
“Uma escrava africana, vendo que não conseguia impedir que os filhos fossem vendidos como escravos, escondeu arroz no seu cabelo para que tivessem algo que comer quando chegassem ao seu destino. Como o cabelo era muito espesso, ela pensou que os grãos não seriam descobertos. Contudo, o proprietário de plantação que comprou as crianças descobriu os grãos. Ao passar as mãos pelo cabelo de uma das crianças, retirou os grãos e perguntou o que era. A criança respondeu: “É comida da África”. Foi assim que o arroz chegou clandestinamente ao Brasil, através das sementes que as escravas escondiam no cabelo.”
O escritor e historiador uruguaio Eduardo Galeano refere-se a uma variante da lenda no Suriname, um importante país orizícola da América do Sul: “Por falta de balas, as suas armas disparam pequenas pedras ou pedaços de osso; mas os matagais impenetráveis são os seus melhores aliados contra os colonos holandeses. Antes da fuga, as escravas roubaram sementes de arroz, milho e trigo, feijões e abóbora. Os seus enormes penteados serviram de celeiros. Quando chegaram aos refúgios da selva, as mulheres agitaram suas cabeças e, assim, fertilizaram a terra livre.”
Edith Adjako, descendente surinamesa de escravos da África Ocidental, contou a lenda das sementes escondidas no cabelo à bióloga e etnobotânica holandesa Tinde van Andel. Quando esta investigadora lhe perguntou como as escravas faziam, a mulher chamou a filha, mandou-a sentar-se e começou a tissir-lhe o cabelo, tal como se fazia e se continua a fazer em África. Enquanto tissia introduzia grãos de arroz no cabelo. Os grãos ficavam tão presos que, mesmo com movimentos fortes da cabeça, não caiam. A equipa de van Andel filmou a reconstituição em St Laurent du Maroni, Guiana Francesa, onde Edith atualmente vive.
Embora, segundo afirma, não se possa interpretar a lenda à letra, Judith Carney considera-a uma fonte de história: “A lenda dos quilombolas [descendentes de escravos fugitivos] sobre a introdução do arroz a partir de um barco negreiro é baseada em factos históricos. Na verdade, os grãos de arroz em casca mantinham capacidade germinativa e podiam ser utilizadas como sementes”. Com poucas diferenças entre as etnias da Guiné-Bissau, explica a agrónoma guineense Isabel Miranda (Beloca), as mulheres adultas e maduras têm a responsabilidade da seleção, colheita, debulha, descasque e conservação das sementes de arroz. A triagem das plantas de arroz reservadas para a sementeira é feita na bolanha. Ficam lá mais tempo, até à maturação completa dos grãos; depois da colheita, as panículas são transportadas para a tabanca, faz-se a secagem, depois são depositadas em recipientes (potes, etc.). Estes são barrados, para protecção e colocados ao sol. As sementes são mantidas afastadas de tudo e só as mulheres podem tocar nelas. Na época da lavoura são retiradas para preparar o viveiro/”inpas” ou para a sementeira a lanço. Deste modo não há enganos.
De cereal espontâneo que dependia exclusivamente da Natureza, o arroz domesticado passou a depender também do ser humano, sem o qual não pode sobreviver. Das 20 espécies espontâneas de arroz conhecidas no mundo só duas foram domesticadas: a africana – O. glaberrima e a asiática – O. sativa. A partir destas duas espécies foram feitas seleções, introduções, adaptações e cruzamentos ao longo dos séculos. O resultado são dezenas de variedades na Guiné-Bissau e milhares de outras variedades em todo o mundo. O arroz é hoje o alimento humano mais consumido no mundo. As sementes de arroz são sagradas e as mulheres garantem que sejam utilizadas com a finalidade para a qual foram escolhidas, afirma Isabel Miranda.
José Filipe Fonseca