Pepito: humanismo, cultura e transformação

 

O Pepito  dizia que  uma pessoa é o que é,  e  isso determina e transparece em tudo o que faz na vida. Conheci-o  no liceu de Bissau em Outubro de 1964, quando tinha 10 anos de idade e ele quase 15. Três aspetos do seu comportamento despertaram imediatamente a minha atenção: era “bulidur”, um aficionado do nosso fidjós nacional  (cada um custava então dois chilins), e os seus amigos mais próximos eram africanos. Adulto, ele continuou a ser  bulidur, mas quis e soube colocar a sua rebeldia e energia ao serviço do seu país. Anos mais tarde, ele  passaria a escrever ‘pausa fidjós’ nos programas de reuniões e seminários do Departamento da Pesquisa Agrícola (DEPA) do Ministério do Desenvolvimento Rural  e da ONG Acção para o Desenvolvimento (AD) em vez da consagrada ‘pausa café’. Quanto à última impressão mencionada, o rapazinho acabado de chegar de Bolama não podia, no contexto racial da época,  saber que o Pepito, de cor branca,  era  guineense, africano. Contei-lhe isso algumas vezes ao longo dos anos e a sua reação era invariável: não dizia nada, sorria.  

Em 1966 o Pepito e a família foram obrigados a deixar Bissau na sequência da prisão do pai pela polícia política  portuguesa PIDE, devido às suas  ideias e atividades anti-fascistas e anti-colonialistas.  Reencontrámo-nos em 1973 no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa. Presidente da Associação dos Estudantes de Agronomia, ele era então um líder estudantil carismático e  determinado no combate às duas vertentes de um mesmo regime que, condenado pela Moral e pela História, e derrotado pelas lutas, tentava  desesperadamente sobreviver: o colonialismo em África e na Ásia (Timor) e o fascismo em Portugal. Foi com orgulho que descobri nele um militante com capacidades de organização, mobilização e liderança excecionais. 

A situação da guerra colonial com os seus dramas humanos, a repressão e   a intensa luta ideológica e política conduziram a um rápido e elevado grau de amadurecimento político e humano dos jovens estudantes.  Durante esse período decisivo da história moderna dos nossos países africanos e também de Portugal (queda da ditadura fascista), o Pepito possuía  já uma cultura política  bastante elevada. Considero mesmo que, em muitos aspetos,  a fase da sua vida no Instituto Superior de Agronomia  foi  determinante na formação das suas ideias humanistas, políticas e sociais.  

O Pepito sabia que era vigiado pelos muitos agentes e bufos da polícia política portuguesa que existiam no Instituto e por toda a parte. Alguns professores com quem tinha altercações eram aderentes ou simpatizantes da ideologia fascista e colonialista. Apesar de uma implacável censura, ele conseguia livros e outros documentos que o regime considerava subversivos e os proibia.  Alguns eram levados clandestinamente de Paris onde eram publicados por editoras como François Maspero, Présence Africaine e L’Harmattan. Assim,  relativamente à libertação da África, ele já tinha lido, muito antes de nós,  Amilcar Cabral, Frantz Fanon, Ousmane Sembène, Gérard Chaliand  e outros. A minha admiração, a minha confiança ilimitada na sua pessoa, a minha aprendizagem com ele e  a nossa amizade começaram nessa altura e fortaleceram-se com o tempo. 

Ele foi a primeira pessoa que me falou da magnífica saga anti-colonial Les Bouts de bois de Dieu publicada em 1960 pelo escritor senegalês e pioneiro do cinema africano Ousmane Sembène. Referindo-se à dura luta dos ferroviários da linha Dakar-Bamako, o antigo sindicalista Sembène escreveu: Os homens e as mulheres que, de 17 de Outubro de 1947 a 19 de Março de 1948,  fizeram essa luta por uma vida melhor, não devem nada a ninguém, nem  “obra civilizadora”,  nem dignatário ou parlamentar. O seu exemplo não foi em vão. Desde então a África progride.  Quando há poucos anos tive a oportunidade de visitar em Ziguinchor  a  casa onde viveu esse grande intelectual e homem de ação, lembrei-me com emoção e gratidão do importante papel que o Pepito desempenhou na minha formação. Tive a mesma emoção quando eu e ele visitámos juntos na Rue des Écoles em Paris a editora e livraria Présence Africaine fundada  por Alioune Diop em 1947 e que deu um contributo inestimável ao despertar da consciência dos militantes anticolonialistas africanos.  

O Pepito tinha uma grande admiração pelo geopolítico e escritor francês Gérard Chaliand.  Entre os seus livros sobre a luta de libertação, penso que os  que mais  tocaram o  foram Guinée “portugaise” et Cap Vert en Lutte pour leur indépendance e Lutte Armée en Afrique publicados  em 1964 e 1967 respetivamente. Tinha também muito respeito  e estima por Basil Davidson, um dos especialistas mundiais da história da África e das lutas pela libertação do continente. Em plena guerra fria, Davidson foi uma das grandes vozes internacionais contra os silêncios, as distorções e as demagogias  do colonialismo. Portugal apresentava-se como uma  “nação pluricontinental e multiracial de Minho a Timor” e a pátria do  “lusotropicalismo”, segundo o qual  as populações africanas viviam felizes sob a sua dominação. Sabíamos que um dos principais propagandistas do regime, pretensamente imune da opressão e do racismo, era o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. 

A obra de Davidson que mais   terá marcado o Pepito foi Libertação da Guiné. Aspectos de uma Revolução Africana (original em inglês publicado em 1969),  cujo prefácio foi escrito com sensibilidade e maestria por Amilcar Cabral. O livro é uma empolgante narrativa histórica e humana cuja análise, objetividade e qualidade foram garantidas pelos conhecimentos,  competência e eloquência desse imenso historiador e jornalista britânico. Nos anos oitenta, Davidson  foi  autor de uma magnífica série televisiva na BBC sobre as lutas de libertação em África, na qual reservou um lugar de destaque à Guiné-Bissau. O Pepito quis convidá-lo a assistir ao Simpósio de Guiledge em 2008, mas não conseguiu. Davidson já tinha uma idade avançada mas, o mais importante, segundo nos constou, é que ele estava muito  desiludido e desgostado com o rumo que os dirigentes guineenses tinham dado à política sobretudo a partir de 14 de Novembro de 1980. Também desgostadas ficaram inúmeras outras pessoas em todos os continentes que tinham estudado a contribuição teórica e  o pensamento político e humanista de Amilcar Cabral, seguido de perto a exemplar  luta de libertação liderada pelo PAIGC e depositado enormes esperanças no nosso país independente.  

Falávamos também e necessariamente da política do nosso país, onde o objetivo tinha  há muito deixado de ser  a libertação do atraso, da ignorância, doença e miséria. Deixou de ser  um instrumento ao serviço da igualdade e do pleno desenvolvimento de todos.  A luta entre partidos políticos tornou-se a via de acesso privilegiada a dinheiros públicos e outros bens usurpados. O que era ilegítimo passou a ser legítimo. O que era ilícito tornou-se lícito. O que era ilegal é agora permitido pelas leis, pela sua aplicação ou não aplicação. O que era imoral é aceite e justificado. No seu íntimo e no seu trabalho, o Pepito foi profundamente afetado pela nova Guiné-Bissau. Mas não cedeu à desmoralização, à indiferença e ao oportunismo. Acabaria por sair voluntariamente do DEPA e do Ministério da Agricultura porque era contra a prepotência, a subserviência e a injustiça sob todas as formas. Manteve-se fiel aos seus ideais de elevação e desenvolvimento humanos, mobilizou as suas forças internas mais profundas e continuou a sua obra. Lutou até ao fim  pela dignidade de todos, sobretudo dos “sem voz”, dos  desfavorecidos e discriminados. 

Os políticos que mais  influenciaram o Pepito foram Amilcar Cabral e Nelson Mandela, dois humanistas, pensadores e estrategas entre os maiores. Contei-lhe que uma vez, após a abolição formal do apartheid, sentei-me num autocarro   na Cidade do Cabo ao lado de uma senhora sul-africana branca. Perguntei-lhe como tal era possível. Ela olhou para mim e respondeu em duas palavras: “Nelson Mandela”.  O Pepito mostrou-me então a seguinte citação de Mandela que tinha no seu gabinete: Ninguém nasce a odiar uma outra pessoa  por causa da côr da sua pele,  da sua condição social ou religião. As pessoas são ensinadas a odiar e se podem aprender a odiar, também podem ser ensinadas a amar.   

O Pepito foi muito  inspirado pelo conteúdo humanista  e sentido histórico da Comissão Verdade e Reconciliação criada na África do Sul por Nelson Mandela e Desmond Tutu. O objetivo era cicatrizar as feridas causadas pelos crimes do apartheid  através da expressão da verdade. Apartheid é uma palavra afrikaans, língua falada pelos afrikaners,  descendentes dos holandeses na África do Sul.  Como se sabe, eles tiveram um papel preponderante no estabelecimento do  odioso sistema racista do apartheid. Quando o Governo holandês compreendeu que a queda do apartheid era inelutável, previu o retorno dos afrikaners  “à casa” e  começou a construir alojamentos para eles. Mas a política humanista de Mandela convenceu os dirigentes holandeses de  que não haveria represálias contra a população branca sul-africana.  Verdade e Reconciliação era uma ponte entre as comunidades separadas pelo apartheid e os seus crimes. Hoje, com um carácter altamente simbólico, existe em várias cidades da Holanda uma “Nelson Mandelabrug”  (Ponte Nelson Mandela). Tive a oportunidade de mostrar duas delas ao Pepito, uma em Arnhem (a 15 minutos da Alemanha e do ponto de partida das invasões hitlerianas) e a outra em Haia (sede do Governo holandês, de missões diplomáticas e de organizações internacionais).  

O Pepito estava convencido de que as distorções, a justificação ou a glorificação da escravatura e  do colonialismo não podiam servir a causa da  reconciliação entre os povos. A reconciliação foi um dos objetivos principais do Simpósio de Guiledge que o Pepito organizou em 2008 e  para o qual convidou o ex-comandante português do quartel de Guiledge e vários outros ex-militares portugueses. Talvez uma das maiores lições que a História nos ensina seja que o colonialismo não devia ter existido, mas existiu. Resta-nos tirar ilações para o bem de todas as nações. Ele tinha  uma preocupação fundamental:  devemos ser capazes de investigar, conhecer, escrever e contar a nossa própria  história. Numa parede do seu gabinete tinha colocado o célebre provérbio africano: Enquanto os leões não escreverem a sua própria história, as histórias das caças só servirão para cantar a glória dos caçadores.     

A expressão da verdade e só ela, dizíamos nas nossas conversas, pode  permitir às gerações atual e vindouras libertar-se do pesado fardo da  História e, ao mesmo tempo, estabelecer um novo tipo de relações humanas entre os povos. Os principais políticos, historiadores, intelectuais, artistas e media alemães compreenderam isso após a segunda guerra mundial. Não adotaram demagogias como “não se pode ver o passado com os olhos do presente” ou “não somos responsáveis pelos males do passado”. Não falaram dos “aspetos positivos” do nazismo. Na Alemanha pós-nazista não existem estátuas, ruas,  parques, escolas, programas de ensino e  comemorações à glória do nazismo ou dos seus dignatários. O comércio negreiro, a exploração desumana dos escravizados africanos no Novo Mundo e o colonialismo não causaram menos sofrimentos do que o nazismo. Porém, não recebem o mesmo tipo de tratamento por parte da historiografia oficial dos diferentes países implicados.  

Numa das nossas viagens a Paris, estivemos no Quartier latin, o bairro que foi o epicentro da revolta estudantil de Maio de 1968. Conversámos longamente sobre a luta dos estudantes contra as desigualdades e descriminações económicas, sociais, baseadas no sexo ou raciais. O Pepito realçou a influência que a revolta teve na sua geração e na   sociedade francesa e europeia. A uma dada altura, a conversa chegou ao filho de emigrantes chamado Nicolas Sarkozy. Na sua opinião, sem  Maio de 1968  talvez Sarkozy nunca tivesse  chegado  a ser presidente. Esse mesmo Sarkozy  iria executar políticas antiemigrantes bastante duras e acusaria os africanos  que vivem em França de serem “comunitaristas”. Este conceito explicitamente racial seria também adotado por intelectruais, profissionais da comunicação e políticos de outros países europeus. Tal como a França, estes   esqueceram-se de que os europeus e os seus descendentes em África e no mundo também  vivem em comunidades, nos seus  prédios, com as suas escolas, línguas, usos e costumes, referências, encontros e comemorações. Também se esqueceram, concluiu o Pepito, de que durante séculos os europeus desembarcavam em África sem visto de entrada.  

Ao lado do humanismo e como uma das suas componentes essenciais, a cultura desempenhou um papel determinante  na obra  do Pepito. Gostava de falar da contribuição teórica de Cabral sobre o  papel da cultura.  Entre as várias citações de Cabral, mencionava esta: [devemos ] comparar o valor das culturas africanas  com os das outras culturas, não para determinar a sua superioridade ou inferioridade mas para determinar, no âmbito geral da luta pelo progresso,  qual é a contribuição que podem e devem dar e quais as contribuições que podem e devem receber. 

Tínhamos o hábito de nos oferecermos livros  um ao outro.  Frequentemente,  um de nós comprava dois exemplares do mesmo livro, um dos quais era para oferecer ao outro. Entre os muitos autores encontram-se os historiadores Joseph Ki-Zerbo e Jean Suret-Canale e escritores latino-americanos progressistas como Jorge Amado, Gabriel Garcia Marquez, Pablo Neruda e Luis Sepúlveda. Ele gostava de dizer que o melhor livro que lhe dei foi Naissance de la Guiné. Portugais et Africains en Sénégambie (1841-1936) de René Pélissier. Isso aconteceu em Bruxelas pouco tempo depois da sua publicação em França em 1990. Li o livro, achei-o interessante e informativo  e arrumei-o na minha biblioteca. “Esqueci-me” dele. O Pepito, não! Estudou o livro e um dos aspectos que mais chamou a sua atenção foram as suas passagens (poucas)  sobre a escravatura. Nessa altura, ele e eu tínhamos uma ideia muito vaga da história da escravatura e do comércio negreiro na Guiné-Bissau e no mundo. Como à maioria dos guineenses e dos africanos, parecia-nos que era  “história antiga” que pouco nos podia ensinar sobre a realidade atual. Em resumo, não fazia parte das nossas prioridades. Mas isso iria mudar.   

Um dia, muitos anos após ter lido Pélissier, ele telefonou-me para a Holanda. Com o seu entusiasmo e a sua clareza tão característicos, disse-me que devíamos começar a estudar e a divulgar a história da  escravatura. Um memorial pareceu-lhe ser o melhor quadro para isso.  Lembro-me de lhe ter dito que a criação de um memorial era assunto de historiadores e não de agrónomos como nós. Não havia alternativa, respondeu. Acrescentou que iríamos consultar e aprender  com historiadores e outros cientistas e com outras experiências,  mas seríamos nós a levar a ideia para a frente. Fomos aprendendo que nenhum capítulo, dimensão ou período da história da África e do mundo  teve implicações mais profundas e em domínios tão diversos do que a emigração forçada e a exploração impediosa de milhões de escravizados africanos. Ficámos a saber que o conhecimento da história da escravatura  era essencial para a compreensão da génese do capitalismo moderno, do colonialismo  e do racismo anti-negro. Era  também essencial para conhecer a  contribuição dos escravizados africanos e seus descendentes para o progresso da Humanidade em domínios tão vitais como agricultura, alimentação, economia,  tecnologia, cultura e liberdade. Apesar da escravatura e não graças a ela. Como outros antes de nós, concordámos que o silêncio não é a solução para os males do passado.  Pelo contrário, os ensinamentos da  História dão-nos a  esperança e a oportunidade de construir sociedades  humanas mais justas. 

Para agir e  transformar a realidade, o Pepito  possuía uma enorme capacidade para  projetar o futuro.  Sabia ligar as atividades do dia-a-dia com os objetivos e o impacto a longo prazo. Por isso, talvez seja apropriado citar aqui uma frase de  Ernest Hemingway em Por Quem Dobram os Sinos,   que o Pepito considerava o seu melhor livro:  Hoje é apenas um dia.  Mas do que fizermos hoje poderá depender o que acontecerá em todos os outros dias que virão. Tivemos a felicidade de visitar juntos em Havana, Cuba a casa onde  esse  grande escritor norte-americano viveu durante algum tempo. 

A um nível superior à média, o Pepito  tinha a capacidade invejável de transformar informações, conhecimentos, sapiência e ideias em ações  e assim produzir mudanças palpáveis significativas. Considerava a inovação a pedra angular da transformação. Aos técnicos do DEPA pedia sempre “coisas novas” segundo a sua própria expressão. Muitas inovações que ele introduziu no nosso pais eram inspiradas e determinadas pelas suas observações no terreno, contactos com as populações  ou por algo que ele tinha lido, visto ou escutado noutros lugares. Ele sublinhava que aprender nos livros ou com os outros era essencial mas “o que fazer e como fazê-lo está nas nossas cabeças”.  

Criou de raíz três centros modernos de pesquisa agronómica em Contuboel, Caboxanque e Quebo. Este último, localizado em Coli tinha como atribuições a  experimentação, a introdução, produção e distribuição de material vegetal de qualidade. Utilizando técnicas culturais avançadas, Coli também adquiria, aclimatava, produzia e distribuía  propágulos multiplicados in-vitro, uma biotecnologia sem modificação genética.  Os propágulos possuíam um elevado potencial de rendimento e gozavam de perfeito estado fitossanitário o que lhes conferia uma enorme vantagem. Mas ele queria ir mais longe, queria criar em Coli um laboratório de multiplicação in-vitro. Investiu tempo e consultas para aprender sobre a tecnologia e  determinar a  sua viabilidade técnica, económica e financeira nas condições específicas do país. Mandou formar um dos seus quadros no Centro de Aplicações Fitotécnicas de Gembloux, na  Bélgica. Eu sabia que a criação do laboratório era então só uma questão de tempo. Quando deixou o DEPA, o Pepito já tinha respostas à maior parte das questões. 

Recordo-me da visita que fizemos  ao maior parque  floral do mundo, situado em Keukenhof na Holanda.  Uma jóia de genética, floricultura, arquitetura paisagística e estética. A uma dada altura, vi nele uma expressão familiar. Ele estava a ‘refletir’, a ‘sonhar’, provavelmente com uma ‘coisa nova’. Lembrei-me então que ele tinha, uma ou duas vezes, partilhado comigo a ideia da criação de um jardim botânico na Guiné-Bissau, provavelmente em Coli. Evidentemente, eu sabia que ele não estava a pensar num ‘Keukenhof guineense’.  Mas estou convencido que se ele tivesse continuado no DEPA, teria criado o primeiro jardim botânico da Guiné-Bissau. Teria assim  posto à disposição do país os valiosos serviços que um jardim botânico pode fornecer, entre os quais: estudos e ensaios botânicos e genéticos; domesticação de frutos e plantas medicinais; introdução, conservação e melhoramento de plantas agrícolas e de outras plantas. Além, evidentemente, dos seus aspetos educativos, de conscientização ambiental e também da sua contribuição para a saúde mental dos cidadãos.     

Alguns dos seus importantes legados foram na área da história como por exemplo  o Simpósio de Guiledge, o Museu da Luta de Libertação Nacional, a conservação das barracas da guerrilha na Região de Tombali e  o Memorial da Escravatura. Outros encontram-se nas áreas da gestão e proteção ambiental, cultura, artes, comunicação de massas comunitária.  Ao mesmo tempo, ele continuou a intervir na agricultura e no desenvolvimento rural e urbano, incluindo saúde e educação. Gostava de citar a seguinte frase de Amilcar Cabral: O povo não luta por ideias ou por coisas que existem na cabeça de alguém. Luta  também por benefícios materiais, para viver melhor e  em paz, para ver as suas vidas progredirem, para garantir o futuro dos seus filhos.      

O Pepito começou a sua carreira profissional no arroz. Disse-me mais do que uma vez que o seu primeiro professor de agronomia e pesquisa do arroz foi o engenheiro maliano Djibril Aw. Este esteve na Guiné-Bissau na segunda metade dos anos setenta, isto é nos primórdios do DEPA que o Pepito fundou em 1975.  Grande especialista do arroz, Aw tinha sido o primeiro diretor africano do Office du Niger, organismo responsável pela pesquisa e desenvolvimento orizícola do  Mali. A sede do Office du Niger encontra-se nas planícies de água doce do delta interior do Rio Niger no Mali, onde vários séculos antes da colonização da África,  foi feita a primeira domesticação do arroz africano, Oryza glaberrima, independentemente da domesticação do arroz na Ásia.  O Pepito disse-me  que antes de morrer gostaria de ir visitar o “velho” Djibril Aw no país dele. Ainda tentámos quando eu trabalhava na Holanda, mas não foi possível.  

Para o Pepito e para os guineenses o arroz não era só alimento. Era também sociedade, identidade, história, cultura, arte. Nas estações de Contuboel e Caboxanque, o DEPA dedicou-se não somente à agronomia do arroz mas também aos seus sistemas de produção determinados pelo contexto biofisico, sócio-cultural, económico  e tecnológico. Para responder às necessidades dos agricultores e do país e às alterações do contexto, o DEPA logicamente integrou na sua evolução outras culturas e áreas de pesquisa e de desenvolvimento. Mas o arroz continuou a ser o arroz. Dois dos impactos mais emblemáticos da liderança do Pepito no domínio da pesquisa orizícola foram a introdução de novas variedades mais produtivas e mais tolerantes a certos stresses ambientais e, pela primeira vez no nosso país, a dupla cultura anual do arroz. Uma outra grande contribuição foi no domínio da conservação do património genético. Mandou proceder à coleta das variedades do arroz existentes no país, que estão hoje conservadas no International Rice Research Institute, organismo de pesquisa internacional com sede em Los Baños, Filipinas. Os pesquisadores, agrónomos, biólogos e outros especialistas conhecem o valor inestimável da conservação do germoplasma para o  futuro da pesquisa e da cultura do arroz. Não é por acaso que ele organizou os memoráveis ENTA (Encontro Nacional dos Técnicos do Arroz e mais tarde ‘Técnicos Agrícolas’) em Contuboel e em Caboxanque, e mais tarde o Seminário Arroz Próspero nos quais participavam e contribuíam não são só os quadros do DEPA como os de outros Departamentos (como o Gabinete de Planeamento a que eu pertencia) e de outras regiões do país.  

Quando em 2017 e 2018 eu trabalhava na tradução, edição e lançamento do livro Arroz Negro. As origens africanas do cultivo do arroz nas Américas,  de Judith Carney, o meu pensamento ia todo o tempo para o Pepito, que sabia que o arroz também tinha sido domesticado em África, mas  não conhecia a odisseia e o impacto dos orizicultores africanos escravizados no outro lado do Atlântico.  O livro é sobre a história da transferência e aplicação de conhecimentos e tecnologias orizícolas no Novo Mundo  por escravizados da África Ocidental, incluindo os da Guiné-Bissau. Foi o Pepito quem despertou o meu interesse pela história da escravatura e foi quando estava à procura de documentação sobre o tema, que descobri o original dessa obra (publicado em inglês em 2001)  sobre um dos importantes capítulos da  história mundial da alimentação. Não sou especialista do arroz e não era do DEPA, mas o Pepito ensinou-me a apreender o valor intrínseco do arroz na nossa sociedade. Eu tenho a certeza de que ele teria sido o principal adepto e  o maior “campeão” do Arroz Negro.   Durante o longo processo de edição da versão portuguesa do Arroz Negro,  quando pensava no Pepito,  “sentia o sangue andar-me no corpo”, como dizemos  em crioulo. Ainda sinto, quando me lembro disso e de tantas outras situações que partilhei com ele e que me marcaram profundamente. 

As inovações institucionais foram omnipresentes na sua  obra. A um dado momento compreendeu que eram necessárias reformas estruturais para o DEPA poder adaptar-se aos novos desafios e  exigências da pesquisa agronómica. A seu pedido, contactei o ISNAR (International Service for National Agricultural System), cuja sede era  em Haia.  O ISNAR decidiu apoiar o processo de transição de um departamento do Ministério  para um instituto autónomo, o INPA (Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola). Começou assim a frutuosa  colaboração do Pepito com um dos peritos internacionais que ele mais admirava e apreciava, segundo as suas próprias palavras: o engenheiro marfinense N’Guetta Bosso, pesquisador do ISNAR e  especialista em planificação, organização e gestão de instituições e sistemas de pesquisa agricola. A admiração  e o apreço entre os dois  eram recíprocos. 

O Pepito leu, observou, estudou, experimentou e obteve resultados e impacto  em domínios tão diversos. Tinha sonhos e utopias, ingredientes indispensáveis de qualquer processo de transformação real na engenharia como na sociedade. Era um comunicador exímio tanto oralmente como por escrito. Durante os últimos anos da nossa longa convivência, tentei persuadi-lo a escrever pelo menos um livro. Não consegui. Um dia, mudei ligeiramente de tática e perguntei-lhe: “se tivesses que escrever um livro, seria  sobre quê?”. A resposta foi espontânea, clara, olhos nos olhos: “Arroz”. Não sabíamos que já era demasiado tarde! 

Não tinha cabimento tentar elaborar aqui uma lista das muitas transformações tecnológicas, institucionais e societais inspiradas, impulsionadas e implementadas pelo Pepito. Mas eu quis utilizar algumas das nossas conversas e andanças para tentar ilustrar, mesmo que  parcialmente, a obra excecional de um homem excecional.  

Inteligente,  ávido de saber e aplicado, o Pepito possuía uma  vasta  cultura científica, política e geral. Era um revolucionário imensamente generoso. Deu  tudo o que tinha aos outros, ao seu povo e sobretudo aos desfavorecidos e discriminados pela política, economia e sociedade. Ainda mais importante,  deu também o que não tinha, como  tempo e  saúde. E, finalmente, a própria vida. Sugeri-lhe várias vezes que fizesse uma pausa no trabalho de alguns meses para tratar da saúde que se estava a degradar há anos. Ele retorquia que não podia, porque tinha atividades programadas e compromissos a honrar. Compromissos com o povo, os únicos que tinha, segundo me afirmou  em certas circunstâncias. Viveu intensamente, transformou muito e morreu prematuramente!   

Para terminar este depoimento sobre alguns aspetos do percurso que tive o  indescritível privilégio de fazer com o ser humano ímpar que era Carlos Augusto Schwarz da Silva,  o nosso Pepito, peço emprestado a Basil Davidson as palavras que escreveu na dedicatória do seu livro Libertação da Guiné:  À memória dos que morreram pela revolução do nosso tempo, à fraternidade dos que vivem para ela e à compreensão dos que a levarão mais longe. 

José Filipe Fonseca