Quem levou o arroz africano para as Américas

Após a minha palestra sobre “Escravizados guineenses e arroz no mundo” no dia 24 de Março de 2022, li o seguinte comentário no facebook: À partida, o escravo é um rebelde e por isso um prisioneiro. Portanto, ele é levado à força e vai de mãos e pés amarrados. Nestas condições, ele não leva nada das suas pertenças. É o colono ou o senhor dos escravos que se apropriou desse arroz e o levou para o navio negreiro para alimentar a sua mercadoria humana  Eu digo que assim foi, mas isso é só uma parte 

da história. No período inicial do comércio transatlântico de escravizados, os esclavagistas europeus ainda não se interessavam pela produção do arroz nas Américas. Interessados estavam os escravizados africanos da Costa do Arroz (do Senegal à Libéria, incluindo portanto a Guiné-Bissau) para quem o arroz era alimento, mas também história, cultura e identidade. 

 Descendentes de escravos cultivadores de arroz no Sul dos Estados Unidos, no Brasil, no Suriname e em El Salvador contam que foram as mulheres africanas escravizadas que levaram pela primeira vez sementes de arroz dos navios para a terra firme das Américas. Tratava-se evidentemente de arroz em casca, isto é com faculdade germinativa, contrariamente ao arroz descascado. Para escapar à vigilância da tripulação do navio, as mulheres escondiam as sementes no cabelo. 

 Nalguns navios que partiam da Costa do Arroz, uma parte do arroz era descascada em terra e a outra parte estava em casca. No navio, o arroz e outros cereais, como o sorgo (milho cavalo), eram descascados pelas mulheres escravizadas que se serviam de um pilão. Uma prova interessante é uma pintura do navio negreiro dinamarquês Fredensborg II, exposta no Museu Marítimo Dinamarquês em Helsingør e na qual se pode ver um pilão (Judith Carney. Arroz Negro: As Origens Africanas do Cultivo do Arroz nas Américas, página 245, figura 7.2). As mulheres tinham portanto acesso ao arroz em casca do qual teriam subtraido clandestinamente uma parte. 

Com autoridade científica, a professora norte-americana Judith Carney analisa a pertinência do “arroz escondido no cabelo” como fonte de história nas suas obras monumentais Arroz Negro e In the Shadow of Slavery: Africa’s Botanical Legacy in the Atlantic World, e no seu artigo With Grains in Her Hair: Rice in Colonial Brazil. Por sua vez, o escritor e antropólogo uruguaio Eduardo Galeano refere-se com eloquência ao mesmo tópico no seu livro Memoria del Fuego. 

 A professora holandesa Tinde van Andel, especialista da transferência de plantas e conhecimentos botânicos e agrícolas africanos para as Américas, quis compreender como é que as mulheres escravizadas conseguiam esconder sementes de arroz no cabelo. A sua investigação no Suriname (América do Sul), em colaboração com a surinamesa Edith Adjako, forneceu-lhe a resposta. Produziu então um video bastante didático – com legenda em português – ao qual deu o titulo expressivo How the Maroon ancestors hid rice in their hair” (Como os antepassados dos escravos escondiam o arroz no cabelo): https://www.youtube.com/watch?v=4H1IbY6PGIk&feature=share. 

O arroz é hoje o alimento mais consumido no mundo. A transferência do arroz africano para as Américas não se limita às sementes ou à força de trabalho que, em si, tiveram impactos consideráveis. A contribuição mais importante dos escravizados da África Ocidental (incluindo guineenses) foi sem dúvida a transferência de sistemas completos de conhecimentos e tecnologias, como evidenciam inúmeras e sólidas provas imateriais e materiais. A imensa maioria dos historiadores da Europa e da América do Norte e do Sul sempre tentou ocultar esse facto, com o objetivo de recusar aos africanos qualquer protagonismo na história do primeiro produto alimentar exportado massivamente para os mercados internacionais, que enriqueceu os proprietários de plantações do Sul dos Estados Unidos e contribuiu financeiramente para a Revolução Industrial, a base histórica do capitalismo moderno. 

José Filipe Fonseca,
zefilipefonseca@gmail.com, Abril de 2022